quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Fernando

Era homem para não me perdoar se deixasse a minha memória esquecer-se dele. Vi-o hoje pela primeira vez quando a noite já ia há muito de breu e o Coura mandou a água para cima da terra por ordem superior de uma barragem situada mais acima no rio. As hierarquias são assim. E os caudais aguentam as ordens de montante até ao dia em que engrossam de vez e avançam desenfreados para além dos habituais trilhos. Como hoje. No lugar onde a rua não servia o próprio propósito, a proposíto de um lençol de água, de um lençol não, de dois o três edredons de água sobre o empedrado, numa distância de uns bons duzentos metros.
Aqui parámos o carro. Aqui decidimos seguir em frente. O faróis eram pequenas lanternas lançadas à negritude do caminho. Aqui decidimos seguir pelo meio, porque pelo meio não devia haver rio, e à esquerda ou há direita talvez houvesse. Os pneus nunca deixaram de sentir o chão. Lá fomos.
Na marca onde a água acaba, está um homem sorridente, com óculos baços. Tem altura de um português de 68 anos. Sorriu pela segunda vez quando abrandámos, com as mãos nos bolsos e um ligeiro guinar frontal, como quem quer meter conversa: "vocês são os segundos a passar aqui", disse, no tom exclamado de quem dá as boas vindas com uma vénia aos forasteiros aventurados, bem aventurados neste caso.
A scooter branca do Fernando já foi da filha psicóloga quando ela andava a estudar em Viana do Castelo. Por trás do avental do motociclo, Fernando transporta dois garrafões de vinho tinto. A mota anda com ele porque a filha já não precisa. Está bem na vida, tem 33 anos e não quer homem. Só por ser solteira "já foi a Londres, a Paris à dislei, à Índia, à Turquia, aos Estados Unidos, ao Brasil, ao Brasil não quer ir mais porque não gostou daquilo lá". A filha está a morar em Lisboa com a mãe e com o irmão. O Fernando veio de lá ontem. Tem casa em Belém, "no melhor sítio de Lisboa, onde toda a gente quer ter", mas o norte do coração deste homem está cravado no minho, em Vilar de Mouros.
O Fernando está meio espantado por nos ver ali. Porquê? Os novecentos habitantes de Vilar de Mouros já sabem tudo sobre a chuva no inverno e sabem dar graças a deus quando a chuva traz as cheias, para lavar o rio e deixar os restos do rio fertilizarem a terra.
A conversa com o Fernando está quase a terminar. Ele aponta lá para longe na água. "Eu ajudei a trazer o Elton John e a Amália Rodrigues para cantar ali". A luz dos médios de um carro aponta para lá e hoje esse passado está submerso.
Em Vilar Mouros, de qualquer um dos lados da ponte romana, ninguém precisa dos avisos provenientes da capital do império para saber que o que sobe, desce, o que molha, seca e o que começa, acaba.

PS: enquanto isto, a família do Fernando vendia cachecóis do Benfica à porta do estádio da Luz. A filha psicóloga foi uma vez de propósito à Polónia só para ver a campa do antigo Papa. Esqueci-me de lhe dizer que o Wojtyla chegou a ser guarda-redes quando era novo.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A saia da portuguesa, as chuteiras dos portugueses, as garrafas de vinho e o Twingo

A proposta da direcção de informação (ano de 2002) incluía: viagem de cinco dias a Bordéus; entrevistas com Pauleta, Marco Caneira e Bruno Basto; edição de peças individuais; contactos telefónicos iniciais com cada um dos jogadores, estando o Pauleta já apalavrado; resposta imediata ao convite da direcção de informação; partida daí a dois dias.

Quarenta e oito horas mais tarde, Bordéus demorou duas horas a chegar até nós desde que entrámos no avião no Sá Carneiro. Tínhamos à chegada uma chave Renault, um carro Twingo, roxo, e esverdeado por dentro, e um mapa da cidade. As malas de viagem de dois passageiros para uma semana útil de estadia não cabiam na mala do carro, só coube lá uma, a outra ocupou o banco de trás com o cilindro do tripé da câmara de filmar.
O hotel demorou duas a chegar até nós desde que entrámos no Twingo e abandonámos o parque de estacionamento, o aeroporto, a banlieue (os arredores), e apontámos o anão com faróis de camião à cidade. Um de nós os dois mudou de ideias pelo caminho e em vez do hotel, fomos procurar primeiro a zona das maisons (casas) dos jogadores portugueses do Girondins (Girondinos, vem de Gironde, um estuário), nome próprio do clube de futebol de Bordéus. Um de nós dois voltou a mudar de ideias e em vez das casas fomos procurar o centro de treinos para facilitar, e encurtar, a viagem da manhã seguinte. Os franceses estariam à espera de dois portugueses de uma televisão portuguesa por causa dos três compatriotas jogadores de futebol.
O Twingo estacionou e ficou a olhar para o palácio. O centro de treinos do Bordéus fica na propriedade relvada do Chateau (castelo) du (do) Haillan (Haillan). Mon dieu! ( meu deus!), eles treinam num castelo construído no local de uma importante batalha da Guerra dos Cem Anos. Quem foi o inteligente (intéligent) que teve a ideia? Na altura foi um simples funcionário do clube, Aimé Jacquet, treinador de futebol que viria a conquistar o primeiro mundial de futebol para a centenária entidade dos três éfes, FFF, Fédération Française de Football (não vale a pena traduzir).
No outro dia acordámos cedo, e nem foi preciso o cantar do galo (coq) para sair da cama. Num primeiro posto de controlo fomos autorizados a seguir em frente e estacionar num lugar indicado pelo vigilante. E quem é que nos veio quase abrir a porta do carro? Marius Trésor! Um senhor! Francês, nascido em Guadalupe, negro negro, praticamente igual ao Marius Trésor da minha caderneta de cromos da seleccção francesa dos anos oitenta, só com a diferença de estar com óculos na cara e de trazer vestida uma camisola azul um pouco mais escura do que a camisola dos irredutíveis gauleses (gaulois). Bonjour! Bounjour! Foi uma festa, o Trésor que eu cresci a ver fechar todos os caminhos para a baliza francesa, abriu todas as portas do centro de treinos, veio tomar café connosco, marcou-nos uma entrevista com o presidente, disse que sim a todas as entrevistas com os portugueses, com a condição de serem feitas nos dias seguintes porque o treinador não queria dar aos jogadores portugueses condições que não tinha dado aos jogadores de outras nacionalidades nas reportagens das televisões dos diversos países.  (acho que nunca agradeci à SIC como deve ser esta manhã com o Marius Trésor).
O treino daquele dia foi gravado na íntegra por ter sido o único autorizado para a recolha de imagens. Seria a nossa base de trabalho para a série de reportagens. Foi aqui que ficámos a conhecer pessoalmente o Jean Claude Darcheville, avançado número 22, um amigo da máquina de filmar.
Durante duas horas, o Zé (nosso repórter de imagem), não tirou o dedo do gatilho, contando alguns tiros ao lado na gravação de um ou outro  "vivo" (jornalista a falar com microfone na mão e olhar para a câmara). Treino, Trésor, entrevista ao presidente, imagens do Chateau (castelo), conversas informais com o Pauleta, o Bruno e o Caneira, acerto das horas das entrevistas nos dias seguintes, e já passava das quatro da tarde e nós sem almoço. Com isto, com aquilo, com o regresso e com o trânsito, já passava das seis da tarde quando entrámos pela porta do hotel. Marcámos a saída para jantar às sete e meia.
O Zé queria um restaurante português, eu queria cigarros franceses,  ele comeu bacalhau, eu fumei Gaulloises, e a ...  (como é que ela se chama Zé?), ela a dona do restaurante, ela trouxe a conta e ao trazer voltou a falar em português Linda de Suza e nessas altura eram já sem pudor as cabeças de homens franceses apontadas à pele de tigre (tigre) da minissaia da portuguesa de cinquenta anos com cabelo de leão.
E outra vez o Zé, com o defeito profissional chamado zoom, focou os olhos num homem de um metro e cinquenta centímetros em pé, ao balcão, a beber cerveja. Apostou que era português. Apostei com ele e acrescentei a informação das botas de tacão alto (cada português com a sua chuteira). Era português, de Vila do Conde como o Zé, mas da Poça da Barca, ficaram amigos, o Zé adoptou-o no resto dos jantares em Bordéus e antes de vir embora baptizou-o de meio tacão.
Havia uma última missão para a manhã do dia em que viemos embora: recolher a encomenda de garrafas de vinho Bordeaux (Bordéus) num supermercado, seis para um, doze para o outro. O trabalho com o Pauleta, o Bruno Basto e o Marco Caneira está no arquivo da SIC. Não representou a totalidade das reportagens. Houve um dia em que fugimos da cidade para fazer a notícia que vai aparecer na próxima história.
A caminho do aeroporto, viajámos com a dúvida dos últimos cinco dias: porque é que eles não jogam com camisolas de cor bordeaux (bordeaux) em vez de jogarem com estas roxas, da cor do Twingo? Não perguntámos a ninguém. Os mistérios garantem a eternidade dos episódios.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A importância da matemática na reconstrução da memória

Sem fazer ideia da cor da camisa, sem a noção de ter calçado sapatos ou sapatilhas, tendo por certo não ter saído de casa com um par de chinelos nos pés, nem me recordando da existência de algum casaco, que até pode ter existido nesta imagem distante, e havendo calças de ganga na história, encarei o número 2300, entrei no futuro, eram quase seis horas da tarde do dia oito de abril do ano de dois mil e dois.

Antes de ter entrado no futuro pousei um microfone azul na sala de reparação técnica da estação de rádio, olhei pela última vez para a prateleira dos gravadores marantz, gravadores muito grandes para quem só precisa de gravar sons numa cassete, gravadores com bolsa em couro preto e alça, entreguei um mini-disc cinzento sony, entreguei os disquinhos, abracei, fui abraçado, gravei na memória os últimos minutos, fui embora até qualquer dia.

Antes de ter entrado no futuro escolhi ter férias, escolhi sete dias, que insistimos em dizer que são oito, escolhi ir ao Sul, escolhi uma varanda branca, uma escarpa, as janelas em cima do atlântico. Numa das noites tive um copo de vodka nas mãos quando estava em pé na esplanada da discoteca de um senhor igual ao Toy (quem é o Toy?), tive vontade de ir dormir sobre o assunto (que assunto?), tive visitas do passado nos sonhos, era uma namorada antiga, tive vontade de ficar muitas horas na cama durante todos os dias e fiquei, convidei o passado para as refeições todas e ele veio, mas só para comer as migalhas de um homem ressesso. Demorou uma semana.

No fim das férias, o futuro tinha uma porta e um elevador para o segundo andar mais um microfone preto, mais uma máquina com olhos que nunca esquecem, mais mesas cinzentas e sofás azuis e computadores do tamanho de uma telenovela. O futuro era a soma de todas as partes e deu nisto.

domingo, 31 de julho de 2011

O realismo infeliz

Longe de França, muito longe de França, a uma Espanha inteira de França, a mais de meio Portugal vertical de França, a sombra do tribunal do Marco de Canaveses faz a cama, deita um homem velho, põe o velhote a dormir, a inspirar pelo nariz, a desinspirar com força pelo meio dos lábios fechados. O chapéu do dormente é castanho, está no chão ao lado do senhor dormente, o senhor tem a cabeça encostada numa coluna de mármore do tribunal, tem as costas nos três degraus, o cu, as coxas, os gémeos, os calcanhares, os pés, estão todos no passeio.

É ali, tão longe de França, a seguir a quem passa pelo velho a dormir, e avança pela porta, e entra no tribunal, e sobe as escadas, um lanço pequeno, um lanço grande, um lanço pequeno, e percorre o átrio, e tira ou não tira um café na máquina do café e da água e dos bolos e das bolachas de pacotinhos, e entra da sala de audiências, e se senta, e se levanta, porque o juiz entrou, e se senta, e pára e escuta e olha e vê a justiça com roupa preta e os reús com roupa às cores, um arco-íris maldito, assanhado, enfim.

Coisas que não vão entrar na reportagem sobre o crime da compra de um relógio de ouro cometido por presidentes de junta de freguesia: não vai a entrar o descritivo da tela que está por trás, pelos lados, por cima, do juiz enquanto o juiz se dedica à leitura, em português de deitar fora, de um romance desgraçado, vulgo sentença, de mil e não sei quantas páginas. A tela. A tela é uma mancha preta, com um mundo laranja, acastanhado nas partes continentais, acinzentado nas nuvens. O centro do quadro gigante é este citrino muito mal espremido pelos pincéis. Em todos os cantos, que costumam ser quatro, as pombas brancas sofrem do génio solitário do pintor e são caras tristes, corpos tristes, temos pena, muita pena.

O quadro de todo este realismo infeliz faz minguar a figura de um juiz falante a dizer cinco horas de absurdos comportamentos locais. Aconteceu na tarde de sexta-feira e ameaçou invadir a noite, longe de França, muito longe de França, longe de onde os quadros das banalidades do dia a dia levam pinceladas de cores mortas e respondem só por... realismo.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Manobras de diversão

Lugar comum é um programa de rádio, passa na antena um, passa que eu saiba só durante as manhãs, antes das nove horas da manhã, programa que me tem apanhado a caminho do trabalho numa zona de sombras, dentro no carro, na rua que passa em frente ao parque de campismo da Madalena. O nome no programa diz tudo, a autora do programa diz tudo e explica bem o significado das expressões que são lugares comuns na língua portuguesa, quem as diz, de onde vieram, o que vão querer dizer a quem estiver a ouvir.

Até setembro, trabalho num escritório com dois mil e trezentos metros quadrados, num segundo andar da avenida da Boavista, no Porto, na entrada do prédio existe há já alguns meses uma folha à quatro, deitada na horizontal, enfiada num plástico transparente, colada com fita-cola na porta de vidro da entrada do rés-do-chão, espero que fita-cola se escreva assim, sei que o escritório onde trabalho tem trezentos e trinta metros quadrados porque aproximadamente desde abril o cartaz diz arrenda-se escritório com trezentos e trinta metros quadrados, segundo andar. No segundo andar só existimos nós. Nós somos quarenta e tal pessoas, somos homens e somos mulheres, somos novos e velhos, mas somos hoje sobretudo todos mais velhos, somos porque estamos juntos há muito tempo e estamos juntos há muito tempo a ser os pés e as pernas, o tronco, os membros, os braços, a cabeça, a anatomia completa da redacção no Porto de uma televisão com sede no centro geográfico de Portugal. Este parágrafo começou  a escrever até setembro porque depois de setembro o Porto não volta a ser lugar de chegada o Porto passa a ser, de uma vez por todas, Porto de partida, e nós, encaixotados, mudamos de rumo, seguimos a vida, começamos de novo, com as mesmas caras, num corpo diferente, em Matosinhos. Saímos do Porto quando o verão for embora e eu hei-de continuar a passar pela sombra dos pinheiros quando estiver a chegar ao parque de campismo da Madalena, com o Lugar Comum a dizer-me as coisas evidentes e escondidas da minha língua portuguesa, mas a minha rua vai ser mais longa e não há-de acabar na avenida da Boavista.

Vou ficar à espera de uma edição do Lugar Comum que me fale das manobras de diversão, apesar de eu já saber que manobras de diversão são as curvas que a inteligência faz para desviar a atenção. Estive este tempo todo adiar a notícia de ter sido assaltado pela primeira vez em mais de nove anos à porta daquela que ainda é a porta da minha SIC na Boavista. Não foi bem à porta, foi na rua ao lado. Estendo então a notícia com os lugares comuns do jornalismo: quem? não sei; quando? hoje; porquê? para roubar apenas uma carregador de iphone; onde? já disse. o quê? o meu carro. A porta do lado direito foi aberta. O trinco do porta-luvas, espero que porta-luvas se escreva assim, foi forçado, o chão ficou coberto com fitas e credenciais velhas, os sacos com livros que fui amachucando debaixo do banco do condutor também ficaram espalhados, uma garrafa de água de litro e meio ficou intacta, as contas também, o documento único também, a cobertura da mala foi atirada, o guarda-chuva preto de marca Vogue que abrigou Bento XVI na visita ao Porto ficou como que por milagre encostado lado mais escuro da mala e escapou ao ladrão que acabou por levar apenas o tal cabo branco do telefone.

Esta noite, em casa, no computador que por acaso não estava no carro, assisti ao episódio 6 da série Traffic Light. A história central deste episódio é o roubo de um carro. O nome da série, em português, é Manobras de Diversão.