sexta-feira, 29 de julho de 2011

Manobras de diversão

Lugar comum é um programa de rádio, passa na antena um, passa que eu saiba só durante as manhãs, antes das nove horas da manhã, programa que me tem apanhado a caminho do trabalho numa zona de sombras, dentro no carro, na rua que passa em frente ao parque de campismo da Madalena. O nome no programa diz tudo, a autora do programa diz tudo e explica bem o significado das expressões que são lugares comuns na língua portuguesa, quem as diz, de onde vieram, o que vão querer dizer a quem estiver a ouvir.

Até setembro, trabalho num escritório com dois mil e trezentos metros quadrados, num segundo andar da avenida da Boavista, no Porto, na entrada do prédio existe há já alguns meses uma folha à quatro, deitada na horizontal, enfiada num plástico transparente, colada com fita-cola na porta de vidro da entrada do rés-do-chão, espero que fita-cola se escreva assim, sei que o escritório onde trabalho tem trezentos e trinta metros quadrados porque aproximadamente desde abril o cartaz diz arrenda-se escritório com trezentos e trinta metros quadrados, segundo andar. No segundo andar só existimos nós. Nós somos quarenta e tal pessoas, somos homens e somos mulheres, somos novos e velhos, mas somos hoje sobretudo todos mais velhos, somos porque estamos juntos há muito tempo e estamos juntos há muito tempo a ser os pés e as pernas, o tronco, os membros, os braços, a cabeça, a anatomia completa da redacção no Porto de uma televisão com sede no centro geográfico de Portugal. Este parágrafo começou  a escrever até setembro porque depois de setembro o Porto não volta a ser lugar de chegada o Porto passa a ser, de uma vez por todas, Porto de partida, e nós, encaixotados, mudamos de rumo, seguimos a vida, começamos de novo, com as mesmas caras, num corpo diferente, em Matosinhos. Saímos do Porto quando o verão for embora e eu hei-de continuar a passar pela sombra dos pinheiros quando estiver a chegar ao parque de campismo da Madalena, com o Lugar Comum a dizer-me as coisas evidentes e escondidas da minha língua portuguesa, mas a minha rua vai ser mais longa e não há-de acabar na avenida da Boavista.

Vou ficar à espera de uma edição do Lugar Comum que me fale das manobras de diversão, apesar de eu já saber que manobras de diversão são as curvas que a inteligência faz para desviar a atenção. Estive este tempo todo adiar a notícia de ter sido assaltado pela primeira vez em mais de nove anos à porta daquela que ainda é a porta da minha SIC na Boavista. Não foi bem à porta, foi na rua ao lado. Estendo então a notícia com os lugares comuns do jornalismo: quem? não sei; quando? hoje; porquê? para roubar apenas uma carregador de iphone; onde? já disse. o quê? o meu carro. A porta do lado direito foi aberta. O trinco do porta-luvas, espero que porta-luvas se escreva assim, foi forçado, o chão ficou coberto com fitas e credenciais velhas, os sacos com livros que fui amachucando debaixo do banco do condutor também ficaram espalhados, uma garrafa de água de litro e meio ficou intacta, as contas também, o documento único também, a cobertura da mala foi atirada, o guarda-chuva preto de marca Vogue que abrigou Bento XVI na visita ao Porto ficou como que por milagre encostado lado mais escuro da mala e escapou ao ladrão que acabou por levar apenas o tal cabo branco do telefone.

Esta noite, em casa, no computador que por acaso não estava no carro, assisti ao episódio 6 da série Traffic Light. A história central deste episódio é o roubo de um carro. O nome da série, em português, é Manobras de Diversão.

2 comentários:

  1. Coincidências do caralho.
    E um texto do caralhão, se me permites a linguagem. Está tão bom o texto que me apeteceu falar assim. E também uma certa raiva pelo assalto em si. No outro dia, quando regressámos da Figueira, também tinha o carro assaltado...
    Vai-me custar deixar a Boavista.
    abraço

    ResponderEliminar
  2. Tu és Foda Reis! Grande texto! Escreve um livro que vou ao lançamento!

    ResponderEliminar