domingo, 31 de julho de 2011

O realismo infeliz

Longe de França, muito longe de França, a uma Espanha inteira de França, a mais de meio Portugal vertical de França, a sombra do tribunal do Marco de Canaveses faz a cama, deita um homem velho, põe o velhote a dormir, a inspirar pelo nariz, a desinspirar com força pelo meio dos lábios fechados. O chapéu do dormente é castanho, está no chão ao lado do senhor dormente, o senhor tem a cabeça encostada numa coluna de mármore do tribunal, tem as costas nos três degraus, o cu, as coxas, os gémeos, os calcanhares, os pés, estão todos no passeio.

É ali, tão longe de França, a seguir a quem passa pelo velho a dormir, e avança pela porta, e entra no tribunal, e sobe as escadas, um lanço pequeno, um lanço grande, um lanço pequeno, e percorre o átrio, e tira ou não tira um café na máquina do café e da água e dos bolos e das bolachas de pacotinhos, e entra da sala de audiências, e se senta, e se levanta, porque o juiz entrou, e se senta, e pára e escuta e olha e vê a justiça com roupa preta e os reús com roupa às cores, um arco-íris maldito, assanhado, enfim.

Coisas que não vão entrar na reportagem sobre o crime da compra de um relógio de ouro cometido por presidentes de junta de freguesia: não vai a entrar o descritivo da tela que está por trás, pelos lados, por cima, do juiz enquanto o juiz se dedica à leitura, em português de deitar fora, de um romance desgraçado, vulgo sentença, de mil e não sei quantas páginas. A tela. A tela é uma mancha preta, com um mundo laranja, acastanhado nas partes continentais, acinzentado nas nuvens. O centro do quadro gigante é este citrino muito mal espremido pelos pincéis. Em todos os cantos, que costumam ser quatro, as pombas brancas sofrem do génio solitário do pintor e são caras tristes, corpos tristes, temos pena, muita pena.

O quadro de todo este realismo infeliz faz minguar a figura de um juiz falante a dizer cinco horas de absurdos comportamentos locais. Aconteceu na tarde de sexta-feira e ameaçou invadir a noite, longe de França, muito longe de França, longe de onde os quadros das banalidades do dia a dia levam pinceladas de cores mortas e respondem só por... realismo.

Sem comentários:

Enviar um comentário